segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O Pai


     O PAI


Oswaldo era o nome do meu pai e ele era uma pessoa generosa. Sua generosidade foi para mim, a melhor das lições de vida.
Procurava atender a toda família: seus filhos, seus netos e as duas bisnetas que ele conheceu. Estava sempre atento para ajudar, dentro das suas possibilidades, aos seus amigos e quem mais dele precisasse.
Socorria aos pobres em visitas, no trabalho voluntário que realizava na Sociedade de São Vicente de Paulo, na chamada “Conferência”. Era o nome dos grupos de vicentinos, em que se homenageavam os santos conhecidos: São Francisco Xavier, Beato Frederido Ozanan, o fundador dessa sociedade. Ele era vicentino com muito orgulho. São Vicente de Paulo é um santo de 1660, portanto completando mais de 350 anos, um santo que viveu para os pobres.
Na casa humilde do meu pai, havia sempre algo guardado, esperando para ser distribuído a quem necessitasse. Arrecadava com amigos e familiares, principalmente roupas e móveis que tinham então, um destino certo.
Era também, um exemplo de constância ao trabalho duro, sem esmorecer jamais.
Tinha uma disponibilidade perseverante para ajudar nos pequenos serviços ou consertos, às pessoas que a ele recorressem.
Sua fé era operante. Rezava com a família à noite, cantando conosco hinos religiosos que marcaram a minha infância.
Minha mãe e ele nos habituaram a lhes tomar a bênção, beijando suas mãos, quando saíamos ou chegávamos.
À noite, antes de dormir falávamos, já na cama: “A bênção, mãe! A bênção, pai!” Ao que eles nos respondiam com a fórmula usual para cada uma de nós duas irmãs, suas filhas: “Deus a abençoe!”.
Meu pai gostava de cantar, feliz, os sucessos do rádio dos anos 40 e 50. Não era tão afinado, mas nos dava prazer ouvi-lo.
Comprava jornais regularmente que me abriram o caminho e o gosto para a leitura. Tinha pouca escolaridade, mas muita sabedoria. Nesses jornais, conheci Nelson Rodrigues e as suas histórias de: “A Vida Como Ela É”. Talvez uma leitura não indicada para uma menina.
Meu pai era ágil. Andava depressa, mesmo com sua leve dificuldade de locomoção, que o identificava de longe, mancando, quando vinha para casa.
Era também, um tanto irreverente. Quando contrariado, recorria às palavras não tão “politicamente corretas”.
Era um hábito familiar da sua infância para expressar descontentamento. Mas não nos escandalizava. Não era para agredir. Era um desabafo.
Tinha sempre uma “frase feita” não publicável. Aliás, era uma coleção de frases engraçadas, perfeitas, que definiam exatamente as situações que o aborreciam.
Algumas falas eram repetidas em ocasiões apropriadas. Se falava de alguém que tinha feito algo errado, completava: “Deus que não me chame por testemunha!”
Se ouvia uma música no rádio e eram citados mais de dois compositores, dizia: “Tanta gente para fazer isso?”
Quando a nossa mãe recitava poesias ou cantava músicas ufanistas e patrióticas, ele nos repetia uns versos de “pés quebrados”, assim classificados por ele e não sabemos se eram mesmo da sua autoria: “Lá vem a lua saindo,/ redonda como um tamanco./ Me fizeram a cama curta,/ e eu dormi com o pé de fora.”
Nas longas conversas com os vizinhos nas noites quentes e enluaradas, em que podíamos ficar nos quintais, havia sempre alguém para contar histórias de assombrações, fantasmas, almas do outro mundo. Meu pai quebrava o clima concluindo: “Nunca se vê fantasmas ao meio dia na praça da Sé. Por que será?”
Ao se aborrecer com alguém, falava entre dentes, para si próprio: “Desculpa, por eu ter te aturado tanto tempo.”
Se alguns de nós perdêssemos algo ou uma oportunidade ele repetia sabiamente: “Deus tem mais para dar, do que já deu”, reavivando a confiança.
Nós éramos crianças, mas o observávamos atentamente.
Seus rompimentos de paradigmas, talvez tenham nos despertado para o espírito crítico, de não aceitar os fatos e ditos como eram apresentados. Mas só nos apercebemos disso muitos anos depois.
Sobre a família do meu pai tivemos poucas informações. Há dois anos conseguimos uma cópia de inteiro teor de sua certidão de nascimento, através do cartório postal.
Era “filho natural”, como se registrava no início do século XX e só nesta altura das nossas vidas, soubemos desse fato. Seus pais, eram solteiros conforme o descrito no documento. Ele contava pouca coisa de sua família e jamais quis retornar à sua cidade de origem, nem a passeio. Soubemos por sua certidão de nascimento os nomes dos nossos quatro bisavós paternos.
Da sua parte, tivemos dois tios: o Pedro e a Oswaldina. E somente a ela conhecemos, numa visita que nos fez, trazida nos anos 50, por dois dos seus filhos – o Mário e o Francisco, os únicos primos da parte paterna que nos visitaram.
Meu pai contava que nosso avô paterno era protestante, como se dizia então, e não “crente” ou “evangélico” como se diz atualmente.
Vinda da sua família, tínhamos em casa uma Bíblia protestante, na tradução até hoje conhecida de João Ferreira de Almeida.
Meu pai cantava um cântico religioso que nos ensinou e que também cantávamos:
“Tu, cujo amor em cânticos,/ Celebram sem cessar,/ O mundo dos espíritos, O céu, a terra, o mar./ Senhor, acolhe as súplicas,/ Dos pobres filhos teus./ Ilustra-nos, melhora-nos,/ Ampara-nos, ó Deus./ Nas trevas da ignorância,/ Não medra o santo amor,/ Ilustra-nos, melhora-nos,/ Senhor, Senhor, Senhor!”
Oswaldo e Diva, meus pais, casaram-se só no civil em 1938 em Itaboraí - RJ.
Contavam que na época do seu casamento não havia padre na capela do lugarejo.
Mais tarde, quando minha mãe insistia em se casar no religioso, ele falava: “Casa
sozinha!”
Foi difícil ser convencido a atender a minha mãe. Ela rezava muito, suplicava nas novenas, pedia ajuda às pessoas amigas, até que conseguiu com que ele se aproximasse da igreja.
Afinal o casamento religioso na Igreja Católica aconteceu em 1951 em São Paulo - SP.
Minha irmã e eu assistimos a esse casamento. Foi uma cerimônia simples à noite, depois das funções religiosas de costume, quando a igreja já estava praticamente vazia. Só estávamos nós, mais os seus padrinhos, que eram amigos de longa data e os filhos deles. Belas lembranças!
Desde então, meu pai começou a frequentar a igreja e a realizar seu trabalho de assistência aos pobres da Sociedade de São Vicente de Paulo.
Oswaldo, meu pai era uma pessoa que gostava de demonstrar apreço aos que o cercavam.
Eu já adulta, era elogiada: “Minha filha é ‘um-pé-de-boi’ para o trabalho!” E este foi o maior elogio que recebi na vida, porque veio dele, meu modelo.
Ele não está mais fisicamente conosco. Em 2010 completaria 100 anos. Faleceu aos 79 em 1989.
Teve uma rica história de vida que procuramos resgatar e registrar para o conhecimento dos seus descendentes. Uma bonita história real.
Rendo aqui, homenagem à pessoa generosa e correta que ele foi, um exemplo para os filhos, netos e mesmos os bisnetos que não o conheceram, ou que não se lembram mais dele, e todas as demais pessoas que com ele conviveram.
Em sua homenagem, deixo aqui esse registro.


Publicado no Volume XX:  "O Conto Brasileiro Hoje" - RG Editores - 2012 -
página 77.
Texto da minha autoria.