quinta-feira, 5 de abril de 2018

Nazareth Peres - Poesia do dia a dia: Sagrada Família

Nazareth Peres - Poesia do dia a dia: Sagrada Família: SAGRADA FAMÍLIA Seu Pedro chegou um dia para ela e simplesmente lhe falou: “Vamos nos casar? Você é sozinha e eu também. Podemos fazer...

Sagrada Família

SAGRADA FAMÍLIA Seu Pedro chegou um dia para ela e simplesmente lhe falou: “Vamos nos casar? Você é sozinha e eu também. Podemos fazer a vida juntos”. Ajustaram o casamento para dali uns dois meses. Não houve grandes formalidades, nem se falou de amor. E eles se tornaram um casal improvável. Seu Pedro era um italiano, vivia só, sem nenhum parente ao que se soubesse. Era um senhor já de meia idade, cabelos brancos, pele clara, olhos azuis. Ela era a Maria, uma roceira lá das Gerais, matuta, analfabeta, meio doentia, que vivia na casa do pai e da madrasta, tocando os serviços caseiros. Pedro mascateava miudezas que transportava em grande mala pelo sertão afora. Passava de vez em quando por onde Maria morava, e observou que ela era boa pessoa, prestativa e que poderia se tornar também uma boa esposa. Casaram-se e resolveram morar na cidade grande, onde haveria mais recursos para Maria poder se tratar da doença instalada na infância e que não merecera do pai, nenhuma espécie de atendimento médico. Assim fizeram. Os dois mascateavam juntos, e alugaram uma pequena casa num novo bairro, longe de tudo, mas que podiam manter. Não demorou muito tempo e nasceu sua única filha. Ficaram felizes. Maria, com todas as dificuldades da vida pobre sim, mas não miserável, cuidava da filha, da casa, do marido, ajudando-o também nas vendas. Agora saiam juntos pelos bairros da cidade grande vendendo sua mercadoria. Como naqueles tempos não havia lojas, feiras livres ou outro comércio apropriado em grande parte da cidade, eles eram sempre bem vindos quando batiam às portas oferecendo seus produtos. Maria trouxe com ela a tradição da educação severa. Ela contava às crianças da vizinhança amiga, como o pai e a madrasta a castigavam, lhe batendo muito. Assim, ela procurava educar a filha, com dureza, literalmente, a chicoteava às vezes. Esse era o seu conceito de educação. Era severa, e a filha lhe tinha muito medo. Dona Maria gostava de contar à noite quando as crianças se reuniam, histórias da sua infância triste e de assombrações que produziam pavor a elas, mas que ouviam maravilhadas, com direito a arrepios e pesadelos noturnos. Esse casal tinha suas qualidades. Marido e mulher procuravam ajudar como podiam seus vizinhos amigos, a ponto de certa vez, dividir uma sala, subalugando o espaço para atender às necessidades de moradia de um casal e duas filhas. Esse casal que foi ajudado conseguiu depois comprar um terreno e construir aos poucos sua casa. Nos fundos do terreno foram construídos um quarto e cozinha, onde se alojou a família que um dia atendeu as necessidades dos vizinhos. A filha de Pedro e Maria era uma bela menina de lindos cabelos encaracolados, que a mãe penteava em grossos cachos ou em tranças caprichadas, tendo sempre uma fita cor de rosa para arrematar os penteados. A menina era amiguinha dos vizinhos. Brincavam todos juntos, no grande terreno, de casinha, de pular corda, de balanço que os pais das crianças haviam feito no quintal. A menina começou a pedir à mãe que cortasse seus lindos cabelos, para que ela ficasse igual às amigas que tinham os cabelos lisos bem curtos, com franjinha. Não poderia imaginar que as meninas de cabelos lisos, adorariam ter os seus cabelos tão crespos e longos como os dela. Tanto ela pediu que um dia, a mãe com raiva, fez-lhe a vontade. Juntou as duas tranças no pé da cama e as cortou com uma faca. E ela ficou linda e feliz, quase igual às amigas. Seu Pedro e Dona Maria, iam à cidade de vez em quando para abastecerem suas malas com as mercadorias que vendiam. Era uma festa quando chegavam e deixavam todas as crianças ficarem por perto olhando a arrumação do pequeno tesouro. Tinha de tudo um pouco: Havia os “olhos de cabra”- umas sementes que serviam de amuletos, agulhas, alfinetes, botões, colchetes, elásticos, fitas, linhas e rendas de todas as cores. Faziam também, parte dessas malas, os espelhinhos, latinhas de “pó de arroz” da marca “Lady”, em seus recipientes azuis, redondos, e com uma bonita moça nas tampas coloridas. Não se sabia pronunciar o nome do produto corretamente. Falava-se “ladí”. Havia os vidrinhos de óleo perfumado “Dirce” para os cabelos, como se usava naqueles tempos. Os sabonetes e naftalinas completavam o estoque. Por uns dias, o casal saía a mascatear como se dizia na época. Um dia o pai da menina sofreu um acidente caseiro. Caiu no quintal, ficando de cama por longos meses num sofrimento que as crianças percebiam pelas conversas sussurradas e nas visitas que lhe faziam. Era um sofrimento silencioso. Dona Maria buscava os recursos que podia alcançar; dava-lhe remédios homeopáticos que lhe indicavam. Um dia ele pediu à filha que lhe providenciasse uma corda. Ela falou à mãe que impediu o ato extremo que ele pretendia consumar. Após longo tempo, ele faleceu. À boca pequena, as crianças também souberam do que se passava. Dona Maria, para não desperdiçar os remédios do marido, tomou-os todos. Como sempre as crianças ficaram sabendo também desse fato estranho. Dona Maria ficou só com a filha, que nessa ocasião já dava sinais de que também estava doente. A mãe procurou recursos hospitalares. Dizia-se que era problema do coração. A menina foi crescendo, assim como suas amigas. Tornou-se uma mocinha frágil mas muito amável e era querida por todos. Frequentava a escola e a igreja sempre que possível, no intervalo de suas incontáveis internações. Aos dezessete anos ela faleceu, tornando-se a primeira grande perda das suas amigas. No momento da mãe arrumar os guardados da filha, chamou uma de suas amigas para ajudá-la nesse doloroso afazer. Dona Maria continuava analfabeta como sempre foi, mas tinha sensibilidade dentro das suas limitações e pediu à amiga que lesse para ela o que a filha tinha registrado numa caderneta. Eram os seus pensamentos mais íntimos, sua mostra de fé, suas dores, sua esperança, bem como algumas orações e cânticos que ela apreciava. Quando a amiga terminou a leitura, o sino da igreja que era perto, soou a badalada de meia hora. Dona Maria falou resignada: “Jesus confirmou!” Deu à amiga da filha essa caderneta como lembrança. Nos dias seguintes, desfez-se de seus pertences, procurou um asilo, assim ela falava, e lá se internou para viver seus dias, onde poderia ainda ser útil a alguém que lhe fizesse também companhia, encerrando a história de sua pequena família. Um exemplo de amor familiar, dentro da simplicidade e da honestidade que passou aos que conviveram com essas três pessoas que a compunham. E não se soube mais da Dona Maria. Eram os anos 40, na Vila Formosa. Meus pais subalugaram um cômodo do casal Sr. Pedro Veroneze e Maria Veroneze. Sua filha, Ada Veroneze era nossa amiga de infância e adolescência. Foi Filha de Maria e cantava no coro paroquial do Santuário de Vila Formosa. Muito doentia, faleceu aos 17 anos em 1957. Foi sepultada no Cemitério de Vila Formosa. Naqueles dias, os cortejos fúnebres eram a pé. O da Ada saiu da minha casa na Avenida Monte Magno, perto da rua Fábio. Fomos a pé pelas Avenidas, Montemagno, Renata, praça Dr.Sampaio Vidal, Ruas Filha de NSS Coração, Padre Júlio Chevalier (antiga rua 69 onde moramos) Cabinari, travessia da Avenida Trumain, Av. Flor de Vila Formosa. Um longo tempo e longo cortejo. O organista do coro paroquial, Adacyr Ferrari, ensaiou durante uma semana a missa de Réquiem que cantamos em latim, na missa de Sétimo dia da amiga Ada Veroneze. LEMBRANÇAS DA VILA FORMOSA DE ANTES. Saudade!