segunda-feira, 11 de maio de 2020

SAUDADES

Um dia se amanhece saudosa. Saudosa, mas não triste! É um desses momentos em que nos propomos a fazer a contabilidade “deve-haver” da vida. E as lembranças assomam: muitas, boas; algumas, nem tanto. E essas, nós empurramos para as sombras da memória. A infância era pobre, hoje se sabe, mas não significava sofrimento ou carência. Pequenas coisas davam alegria: Os cafés-com-leite. Pouco leite e pouco pão. Doces caseiros deliciosos. Os almoços e jantares simples: arroz e feijão, aves, legumes, verduras e frutas do quintal.Eventualmente, havia carne bovina, assada aos poucos na panela. Umadelícia, complementada com batatas douradas. O feijão era cozido lentamente a cada dia, no caldeirãozinho próprio, no fogão a carvão. Sem geladeira – não havia eletricidade – a comida feita diariamente, era saudável e saborosa. Para ir à escola andava-se muito, à beira de córregos ladeados de vegetação e flores silvestres. Caminhava-se quase uma hora com a irmã e as amiguinhas, até outro bairro distante. A escola, numa casa adaptada, era mobiliada com compridas mesas e bancos que as acompanhavam. Os alunos sentavam-se lado a lado. O professor, dizia-se, era “alemão” e se chamava João Waldman. Era um senhor de pele avermelhada e cabelos claros. Ele dividia a classe em duas séries. No nosso horário, funcionavam a segunda e a terceira séries. O professor trabalhava ao mesmo tempo as duas séries, na lousa repartida ao meio. Em um ano, podiam-se completar essas duas séries. Eram os anos quarenta. Os uniformes, simples, eram feitos de sacos de farinha de trigo. As saias eram tingidas com a tinta “Guarany”, e ficavam de um azul-marinho desbotado. As pregas soltas, não tinham bom caimento. As blusas brancas eram do mesmo tecido e tudo era feito no maior capricho, pela nossa mãe. Nos pés, sandálias de solados de pneu. Em casa usavam-se tamancos de madeira. O couro da parte de cima era enfeitado com florezinhas pintadas. No dia a dia as crianças andavam, mesmo, descalças no quintal de terra. A mala para a escola era uma caixa feita pelo nosso pai, com madeira fina e um suporte de tecido para ser carregada ao ombro. Como pesava! Na casa do botão da blusa, a borracha redonda, era pendurada pelo furo central em um barbante, para que não fosse perdida. Levava-se um tinteiro redondo, pequeno com rolha de cortiça e contendo tinta azul.Havia também tinteiros com tinta vermelha, pouco usada. Uma caneta fina de madeira, às vezes decorada com uma pintura colorida e com uma pena de metal, acompanhava o tinteiro. A cada poucas palavras, devia-se emergir a caneta no tinteiro, porque a tinta se acabava logo. A pena era trocada constantemente, pois se estragava com facilidade. Para secar a tinta da escrita, era usado o “mata-borrão” verde, de um fino papelão absorvente para ficar, assim, um trabalho escolar bem limpo. Um dia, uma das amiguinhas não conseguiu abrir o tinteiro e empurrou a pequena rolha para dentro. A tinta transbordou, espirrando pela sua blusa branca e seu rosto. A menina chorou muito e voltou para casa se escondendo atrás da sua maleta escolar. Pequenos acidentes que não se esquecem. A meio caminho para a escola, parava-se na casa de outra amiguinha. Ela era filha única e tinha um lindo uniforme de casimira azul- marinho. A amiga era bem calçada e bem penteada, com longas tranças douradas. Linda! Um retrato antigo evidencia a diferença das roupas e calçados, mas, isso não nos incomodava. No mato que rodeava as casas da vizinhança e o caminho para a escola, havia frutinhas e muitas flores silvestres. De uma erva chamada “arranca-toco” era feita uma infusão muito amarga, que depois de se beber um pouco, era colocada em grande quantidade, numa bacia enorme no meio do quarto e se tomava um banho de imersão, bem quente. Curava a dor e a febre e sarava-se com isso. De vez em quando, a mãe das crianças as levava ao médico homeopata. Ele segurava a mão das doentinhas, olhava nos seus olhos e descrevia o que tinham. Depois, receitava uns glóbulos brancos em vidrinhos, que eram tomados religiosamente e assim também, eram curadas as pequenas moléstias. Isso tudo há mais de sessenta anos! Nos anos 40. Onde? Nos grotões do Brasil? Não! Num bairro de São Paulo – SP – Vila Formosa – hoje tão pertinho de tudo. A vida seguiu seu curso: Lutas, perdas, vitórias, conquistas e o saldo é positivo! Que bom! E aí, estamos nós na frente da casa da amiguinha "rica" Cedenir Kmaradet, na Avenida Dedo de Deus, ainda só um brejo. Ela é a menina de saia escura. Ao seu lado, A Ada Veroneze, ambas falecidas, mais a Maria Aparecida Martins, a Nazarina, minha irmã e eu. Nós quatro morávamos na antiga Rua 72, na Vila Formosa, perto do chamado "Buraco Quente".